maio 20, 2015

Vida de Cão


    O cachorro hoje se comportou. Não pulou em mim quando cheguei e nem sujou minha calça, não me arranhou, não latiu desesperadamente para os cachorros vizinhos, não roeu o pé da mesa, não destruiu o novo pote de ração. As bitucas de cigarro que fui jogando durante anos em cima do mesmo telhado foram caindo ao chão com uma ventania não vista há tempos. O dia revezou entre silêncio e grito, sossego e tormenta. O dia fui eu. O cachorro agiu como eu agiria se fosse um animalzinho de quatro patas trancafiado nessa casa por obrigações de um pseudo-dono. As bitucas despencaram como toda mentira minha vem à tona por mais tempo que perdure. A geladeira está vazia, o sofá está vazio, a televisão está vazia. Eu estou vazia. Em mim, apenas um cachorro sem dono sem raciocínios, nem emoções. Em mim, apenas uma bituca de cigarro sem utilidade alguma, sem nicotina pra se tragar. Em mim, apenas uma casa com paredes de tintas descascadas e móveis frios como o tempo. Nada aquece, nada preenche, nada causa coisa alguma. O cachorro hoje se comportou, e eu faço como ele: me deito no chão gelado, sem objetivos, sem sonhos, sem querer roer ossos, apenas deito e durmo como se fosse para o resto da minha vida.

Flávia Andrade

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