novembro 06, 2015

A guria das artérias folks


[Leia ouvindo Just Like a Woman, Bob Dylan]
    A guria em pé no ônibus não, e nunca, quis contar o que estava sentindo - e o que causava suas olheiras - ao sair de casa. Tampouco se pôs a falar quando fizeram um mutirão de três pessoas da família para questionarem sobre faculdade e namorados. Não mencionou o acontecido de quinta-feira e mordeu alguns pedaços de maçã. A realidade, de poucos instantes duradouros até o fim da semana, que ninguém quis perceber foi que toda aquela pressão e frequência de questões somente a fizeram fugir mais depressa. Ela também não sabia as respostas e subiu a rua na alta velocidade de um pé depois do outro. A guria não, e nunca, olhou para os lados ao atravessar, porque sua audição de menina inconsequente sempre a fazia acreditar que o caminho estava livre. Fora de casa a liberdade gritava em seus ouvidos.
    Ela tinha cabelos escuros sem cor definida, acostumados a serem presos no alto da cabeça que sempre doía - por enxaqueca ou ressaca. E, do meu banco até ela, olhava em seus olhos que buscavam os detalhes emocionais e não enxergavam nada de material à primeira vista, pois nunca foi dada aos objetos e sempre sentiu demais o que ninguém mais poderia entender. Sua boca se movia pouco durante o dia e, dispersa, se mantinha fechada enquanto todas as palavras corriam desesperadas pela mente. Parecia distraída, mas estava intensamente compenetrada nas pseudo-resoluções amorosas. E, se caso mostrasse muito os dentes em um riso, causava motivo de estranheza. Não era habituada a essa abertura dos lábios e, assim, aqueles que estavam ao seu redor também não eram. Por dentro: tinha fígado desgastado, pulmão meio ruim, e coração com peças faltando, perdidas ou quebradas; peças que o serviço especial de consertos humanos não tinha no estoque.
    A guria em pé no ônibus, com o braço direito esticado para segurar a barra amarela de apoio, e essa minha visão dela não escapa em um segundo sequer, não se vestia tão bem. Era só uma calça cinza e larga com uma blusa indiana trazida por um amigo que há tempos não fazia mais contato. Também não tinha ritmo na voz, contava piadas como se fosse música e cantava músicas como se fosse piada. E nunca, ela que era tão cheia de nuncas, deu ouvidos a quem tentou corrigir sua postura. Quanto mais pensava, mais entortava a coluna. Não precisava dar ouvidos aos outros, afinal, porque seus ouvidos só escutavam, desde quando ela ainda tinha jeito de mudar até se tornar aquilo para a eternidade, Bob Dylan e Neil Young.
    Não era, também, dada aos acertos; era somente uma coisa corriqueira sem esperanças. Ela era um pequeno erro por fora, um caos por dentro e uma noite de distúrbio que durava o tempo inteiro. E, ainda insuficientemente perdida, quis se estragar um pouco mais ao se render a uma pessoa só, que viajou por todo seu corpo até encontrar seus caminhos sem saída, dar meia volta e partir. Seus muros finais machucavam e, aquele que tentou enfrentar as tais barreiras, não aguentou. Ao ir embora, na fuga da escapatória contra vontade dela, quebrou mais algumas de suas peças e deixou outras tantas falhas. Sem explicação, se tornou o homem que quis-e-largou, assim, bem rápido.
    Acontece que, antes que ele fosse, tirou-a do lugarzinho de aceitação.
    Ela já era a guria da rotina comum que vivia em completa estranheza e nós sabemos. Você agora é cúmplice por entendê-la. Ligava o rádio para se desligar, comprava quase nada além de cigarros, falava pouco e escrevia livros de cem mil palavras. Ela subia as ruas, descia as ruas, mas ninguém a via.
    E ele apareceu. Por que diabos, entre tantas pessoas de tantos mundos de bairros daquela cidade estreita, ele foi aparecer na frente dela? O rapaz parou e disse que reparou naquele jeito da guria de se esgueirar paredes afora para chegar em locais que não queria estar. Disse que gostou daqueles risos, pelo simples fato de serem raros. (Ela quis sorrir mais, mas o elogio era pelo de menos). E até ousou comentar, na frente de uma multidão de seis pessoas, que ela era a melhor pessoa que ele já havia conhecido, com aquela falha de nascença na sobrancelha, com aquela única mecha loira por baixo do cabelo preto, com a voz de atriz de filme francês falando português; e com o dom de fazer macarronadas. Ele sabia que o que ela sentia era tão forte que alcançava seu esôfago como um soco e doía também.
    Depois de um tempo, além de dizer, demonstrava. Passava horas e horas deslizando alguns dedos por seus braços, seios e costas, enquanto ficavam deitados. Ele gostava de fazer cafuné, causar arrepios, tocá-la. Ela se sentia tão dele, que se esquecia do peso que era ser dela mesma. E a garota lembrava bem daquele dia em que, não se sentindo boa para mais ninguém, correu até ele em um ritmo frenético e, antes de sentir medo por talvez não encontrá-lo, avistou-o no meio do caminho, e ele disse:
- Estava indo te ver.
    Só ela soube o quanto aquelas quatro palavras significaram, pois não era ela sozinha fazendo de tudo para salvar uma relação crua, eram os dois super aquecidos se encontrando sem suas salvações. Estavam lutando um pelo o outro. Ele fazendo um bem que ela precisava, e ela se recompondo para fazer jus ao bem recebido.
    Por que é que alguém foi dizer que gostava daquilo tudo? Daqueles defeitos em um corpo com estrias desenhadas, daqueles defeitos em uma mente com imprecisões. Depois dos primeiros elogios, a guria quis mudar a cor do cabelo, quis olhar quantas cadeiras vazias restavam nos locais e procurar as de-dois-para-dois, quis falar sobre o que não sabia, apenas para continuar recebendo-os. Mesmo assim, os pedaços defeituosos de dentro ainda estavam lá, sem remendos, sem cola, sem costura, sem novas instalações.
    Quando aquele certo alguém disse que gostava dela, não enxergou as músicas folks que percorriam suas artérias. Gostou por fora e um cadinho de dentro. Não havia visto o espírito livre e zombeteiro, a vontade de amar por acaso, rápida e intensamente, e os planos repentinos de ir embora a qualquer hora. Não havia visto que ela não precisava de acompanhante, mas de alguém com coragem de segui-la. E quando descobriu esses detalhes - repentinamente quando as músicas altas dos fones dela escaparam para a sala de estar -, não quis ficar.
    Por que é que alguém foi dizer que gostava daquilo tudo? Antes daquilo, a garota ainda sabia viver um pouquinho bem, não queria se trocar por uma nova geração. Depois daquilo, de estar toda mudada para se adaptar de mansinho, mostrando o sorriso amarelo um pouco mais e suavizando lentamente seus toques para agradar aquele moço que sabia acariciá-la tão bem; depois de ter sido melhor para ele apenas para ser melhor para ela mesma também, não soube mais quem seria sozinha. A liberdade se comprimiu em uma pequena necessidade de ser amada.
    A guria em pé no ônibus segurava o choro. E eu não era mais eu, era só, e infelizmente só, o rapaz que havia deixado-a daquela maneira. Quando chegou ao seu destino, puxou a corda de parada, olhou a luz vermelha no topo da porta automática, olhou de soslaio para o rapaz que, por coincidência foi parar naquele mesmo veículo naquela manhã, e desceu para andar por vias eternas de desconhecimento dele. O folk permaneceu tocando durante o trajeto e ressoando nos ouvidos de todos. Mas só ela sabia sentir.
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