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Ela está de short jeans rasgado e
sutiã verde com rendas, dançando alguns blues
que tocam em seu rádio amarelo à pilha. Pela janela a cena me desperta
recordações das festas a dois que fazíamos dentro de seu quarto alaranjado
quando chegávamos bêbados e não queríamos parar, tampouco dormir. As noites
quase mortas de Campo Grande eram como noites em Paris quando estávamos juntos,
uma Paris sem cadeados. Nunca fomos de corromper nossa liberdade. Eu me lembro
da sua voz embargada me jurando amor e drama, prometendo que pelo resto de sua
vida com pulmões e fígado arregaçados estaríamos juntos, mesmo que não
soubéssemos pertencer a ninguém. Ela dizia besteiras e me convencia de que era
o melhor que eu poderia ouvir. Agora somente ouço seu som sem o meu.
Dentro da
geladeira tem vinte e duas garrafas que ela comprou com todo o dinheiro que
sobrou no fim do mês e ficou em sua calça. Nem todo o álcool do meu cantil de
bolso e o álcool em gel nas minhas mãos superaria o seu estoque de cerveja. Eu sei
disso porque a vi no mercado e não consegui voltar pra casa, fiquei contando
cada item de sua cesta para não correr o risco de buscar seus olhos pretos e
perder meu auto-controle de não dizer nada. E dentro do meu carro, na semana
passada, ela esqueceu a carteira com alguns trocados e não vai pedir de volta.
Eu penso em usar como desculpa para ter voltado aqui, para bater palmas no
portão em outra tentativa de entrar e ser o melhor que posso.
Seus
dedos estralam no ar, os pés pisoteiam o chão e a cintura segue um ritmo só
dela, transparecendo despreocupação com tudo o que há fora de sua zona de
conforto. Não que sua vida ali dentro seja tão boa. Os olhos estão fechados e os
cílios pintados de rímel azul brilham refletidos na luz da sala de estar,
sentindo a brisa leve que passa por mim até alcançá-la. Seus cabelos presos com
fios soltos me impedem de continuar e eu paro na sua calçada, olhando-a com
nostalgia. Nós fomos tudo o que pudemos ser, fomos tanto que não suportamos. Ela
segura uma lata vermelha de cerveja gelada, equilibrando-a no meio da voz rouca
que grita na música. Joga-se no sofá, ainda às cegas e sorridente. Seu blues salva o meu, sendo as cifras
energéticas que sobrepõem minhas letras melancólicas. Toda a parte ruim de nós ficou
comigo e eu quis fazê-la feliz, deixando a parte boa em sua casa, mesmo assim
de longe, mesmo não tendo mais nada.
Costumávamos ser os melhores quando a vida ainda não era de todo esse
mal, e o que perco a partir dessas semanas sem ela é tudo o que adquiri do
mundo por querer. Com ela eu desejei as (re)descobertas. Os aprendizados de
gramática, Bhaskara e células tronco vieram pela precisão de notas, e eu sei
das guerras mundiais, das revoluções e dos ataques porque assisti a filmes. Eu
escutei sobre dor, sobre as armas e as drogas porque precisava sentir medo e
não me arriscar, crescendo no modo "Papai Noel e bicho-papão". Mas
com ela, e somente com ela, eu quis aprender os significados de amor, da
necessidade de estar com alguém e dos efeitos de madrugadas afora sem pensar em
dias anteriores ou seguintes.
Agora,
ao contrário de todo agora que
escolhi para viver com ela, eu estou no clima sombrio de sua rua, fumando um cigarro
de palha com cara de tédio. Eu sei que é saudade. Eu sei que é angústia. Eu sei
que é vontade de invadir a casa e dizer que eu desisto do babaca que sou para
ser o que ela sempre mereceu. Olhos vidrados, avermelhados pelo controle do
choro. Quero dizer que sinto muito pelas noites em que não apareci e não
expliquei meus motivos, e pelo tanto de vezes que meu carro quebrou no meio do
caminho. Confessar que me arrependo de ter colocado-a em um não-lugar na minha
vida, deixando-a em um abandono disfarçado de abrigo, como se no fundo, no
fundo, eu fizesse algum bem; confessar que minha família queria conhecê-la no
meio de nossa indecência de não nos assumir como casal.
Eu
explicaria por inúmeras vezes sobre como o que sinto é imediato: um sorriso
após ouvir seu nome em todo lugar ou encontrar suas iniciais na logo de uma
marca qualquer. Eu contaria que salvei pequenas partes de mim, como uma mínima
inocência infantil, um pedaço de Pollyana, para que me adequasse ao que ela
sempre teve, para me encaixar no seu livre arbítrio. Diria que nos separarmos é
complicado demais pra mim, pois aprendi a nos enxergar como uma identidade
única, criando-nos como uma pessoinha estranha que por coincidência gostava de
todos os livros do Chuck Palahniuk com toda a força de gostar também de Bob
Esponja e skittles.
À
tardezinha, não sei se é de sol ou de lua como ela, a iluminação é pouca aqui
fora, mas lá dentro ela se move entre todos os sentidos aguçados que tem,
satisfazendo-os na própria boate que arquitetou, sendo um tumulto a sós consigo
mesma.
Ela dança
do mesmo jeito que dançou na minha frente com meia-arrastão e mais nada, quando
ainda éramos felizes dentro de um quarto de solteiro reajustado para dois.
Dança como se pudesse fazer as paredes e os móveis e o ventilador dançarem
também, como se fosse uma cigana com toda a certeza do futuro de sua vida e não
se preocupasse mais. Eu não posso ir embora e pego o celular, sabendo que é um
erro, digito seu número decorado, escuto chamar três vezes no meu ouvido e em
cima de seu sofá, vejo-a olhar para a tela. Número desconhecido, eu tenho
certeza. Não vai atender, não vai atender, não vai atender.
Eu sei
que sou sempre pela metade: semi-embriagado, semi-feliz, pseudo-independente. Enquanto
ela é por inteiro essa loucura que roda e roda e roda por cima do tapete marrom
com os pés descalços sem pensar em mim ou qualquer outra pessoa que não lhe
faça bem. E continua caminhando como se tentasse um equilíbrio em corda bamba
nos pisos verdes de cerâmica da cozinha americana. Eu poderia entender a
distância de nós dois apenas por nos comparar, mas para quem já esteve tão
próximo, todo metro longe é como estar em outro lado do oceano.
Ela atende e sem dizer coisa alguma anda até a
janela de vidro, encontrando-me no portão. "Eu posso entrar?" eu
pergunto, "Por que?" ela quer saber. É só por desejar de novo seu
cheiro de mousse branco de morango na
minha camiseta. "Só quero mais uma conversa". A ligação cai e a
garota de sutiã verde volta a gritar a letra da música que diz alguma coisa que
ela gosta, ignorando o mundo aqui fora e eu bem dentro dela, esquecendo que uma
vez gostou de mim a ponto de me beijar embaixo de águas pesadíssimas de uma
cachoeira. Porque você sabe, essas coisas de amor às vezes dão e passam, porque
a vida tem que seguir.
O tempo
não passa porque seguro uma bagagem enorme e pesada de coisas para dizer,
coisas ditas, coisas para serem entregues e coisas para pedir de volta. Eu me
vejo em outra perspectiva, saindo de mim: estou de fora ouvindo sua voz
desafinada e vendo-a algumas vezes dançar através de umas brechas da cortina
roxa que acaba de abrir para me impedir de enxergá-la. No mínimo, pareço patético.
Eu apenas sei que ainda tenho de dizer que
não sou - mais - como todos os outros, que às vezes realmente bebo mais do que
devo, mas que ela também faz isso e pode me entender. Que erro embriagado e
sóbrio, que sou figura errante sem jeito de melhoras imediatas. Ainda assim,
quero pedir paciência para que me mude. Uma viagem com mochilas, uma saída para
lugar nenhum, uma noitada no banco de trás, não importa, aceito toda resolução
que me altere.
E, de
longe, tão leve em relação ao próprio corpo, eu sei que ela não está sentindo
nada. Não nesse momento. Nós não sabemos o que está acontecendo com um e com
outro, nem com nós mesmos. Nós apenas estamos nessa porra de relação complicada que está acabando desde semana passada
e, enquanto tento remendar, ela fecha os olhos e dança.
Ela está de short jeans rasgado e sutiã verde com rendas, como eu disse que
fica linda, como odiou ser vista da outra vez. "É minha roupa de ficar em casa",
ela disse. A mais bonita. Eu estou aqui parado enquanto ela segue em frente. Eu
estou sem saber o que fazer e, desistindo de estar de mãos atadas, bato palmas
em seu portão. Uma segunda chance pra mim mesmo. Ela abre a cortina e a janela.
"O que é?"
- Eu posso entrar? - eu insisto.
Seu sorriso está desfeito, a música
perdeu o sentido. Eu sinto vontade de pedir desculpas por estragar seu dia, mas
eu precisava fazer alguma coisa. Eu me perco imaginando-a virando toda aquela
bebida gelada. Ela se afasta da janela e fecha tudo novamente. É um jeito de me
mandar embora. Como se já não tivesse tido a mesma atitude tantas vezes. Deixo-a,
cansado e sem meu último cigarro, com sua roupa que me tira do senso-comum para
trás. Eu perco minhas certezas e ela não se importa. Deixo os elogios guardados
e a felicidade de abraçá-la para lá. Um não que não é dito, mas apenas
significado, como uma porta que batem na sua cara enquanto você nem completou
sua frase, dói bem mais. Eu não vou ficar mais implorando.
Ele
está descendo a rua, ele, o outro. Aquele que roubará meu lugar ainda quente. Invadindo
o espaço que eu nunca quis oferecer para mais ninguém. Eu daria um soco em seu
rosto se eu mesmo não fosse um babaca e também merecesse. Eu o imagino tirando
o sutiã verde de rendas dela antes mesmo de elogiar, antes mesmo de analisar o
quanto ela fica bonita nele e no short
jeans rasgado pelo simples fato de fazê-la se sentir extremamente
confortável, sem notar suas pequenas manchas de nascença. Eu o imagino no sofá
com ela. Os dois transando entre as almofadas rosas, sem nenhum sentimento
intenso como o que sinto. Eu nem posso mais sentir. O que sinto é uma raiva
filha da puta em mim e de mim porque eu sou um imbecil.
Eu paro no
fim da rua e olho para sua calçada. Ele está na frente da casa dela, ele está entrando
na casa dela, ele está fechando o portão da casa dela. Tão simples. Eu não pude
entrar, eu não pude ficar e dizer que ela é minha. Ela não quis me esperar para
consertar tudo novamente e refazer nossa liberdade francesa a dois. Bebo no meu
cantil cinza e sigo em frente voltando cada vez mais para trás da vida, indo
cada vez mais para longe dela.
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