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Nos embaraços do cabelo ainda estão a
neblina e a nicotina da madrugada passada. Os fios encaracolados formaram nós
dispersos, e nos nós dos dedos permanecem as digitais, os toques entre as mãos quentes,
juntinhas, como se assim pudéssemos aquecer o resto de nossas vidas também. O
vento frio batia e estávamos expostos àquelas horas tardias, pensando em
histórias como se fossemos escritores de verdade, com bagagens de frases de
efeito.
Eu tinha algumas coisas, muitas e tantas,
para te dizer entre os sussurros e os risos altos, porém tive medo de estragar aquele
clima que se ajeitava pra gente. A lua deslizou silenciosa e calma, passando
quase imperceptível por nós até alcançar o sumiço, para que não víssemos que já
era tarde. O tempo esfriou, meio aflito, sem nos deixar com vontade de fugir
depressa; apenas foi se infiltrando em nossas peles e, quando o frio nos fez
correr, já estávamos perto de um abrigo que nos fizesse sentar e pensar em
nossas vidas, aquecidos como se fosse na frente de uma lareira de filme
americano. Eu não poderia desgraçar a situação.
Contudo, sem medo nenhum, talvez por não
ter notado a poesia toda daquele dia que não queria acabar, você falou o que
queria dizer. Falou até mais e demais, sem receio de deixar escapar alguma confissão
que pudesse me fazer chorar naquela hora, ou no resto de hoje, ou pelo semana
toda - e deixou! - mas tento não ficar recordando. Eu mantive minhas pernas
alinhadas ao chão, meio trêmulas, para você repousar sua cabeça em meu colo e
contar sobre aquelas coisas que eu não poderia ter imaginado antes. Não poderia
porque eram sobre você em relação ao mundo, vivendo lá fora sem mim e passando
por tudo o que eu passava longe do seu contato. Eu não imaginava porque não
queria imaginar, mesmo que fosse fácil; era por precaução e cautela comigo
mesma, um zelo egocêntrico. Escutei palavra por palavra, daquelas que poderiam
me ferir a qualquer instante em qualquer breve deslize, sem olhar nos seus
olhos, sem ter respostas melhores que: eu te entendo.
Meu corpo e alma transbordavam até a ponta
da língua, querendo dizer: eu queria ter estado lá com você. Mas naquele aperto
no peito, até naquele, por mais estranho que possa soar, encontrei felicidade.
As pessoas se revelam em suas completudes
de intensidade, elas se revelam por inteiro como realmente são. Quando
encontram sossego e abrigo em alguém ou algum lugar, é quando não é mais
possível que se mantenham uma pessoa só, de sempre. Explodem, expõem-se,
brilham. E eu adoro quando saímos do
cotidiano. Quando nos distraímos das próprias pessoas que estamos
acostumados a ser, de nossas próprias existências, e nos revelamos com todas as
particularidades de dentro, com pequenos gestos que dizem mais do que os
diálogos compilados do mês podem dizer, vivemos inteiramente.
Nessa madrugada, saímos. Você saiu do seu
cotidiano banal, às vezes forçado, e me mostrou um sorriso novo, triste e
embriagado, que eu achei tão, mas tão bonito! Eu poderia estudá-lo, roubá-lo
pra mim, guardá-lo em uma fotografia torta feita com as minhas mãos aquecidas
pelas suas. Nossa madrugada foi feita de detalhes, e todas as outras boas possibilidades
se tornaram um sonho meu. E eu saí da minha rotina de disfarces: demonstrei
todo o encanto em prosa da poesia simbolista que nos rodeava.
As horas quase não passaram correndo como
sempre passam, porque eu precisava reencontrar em você as minhas alegrias
perdidas nos outros anos. Eram muitas, e eu não parava de sorrir. Eu estava
confortável em ser a personagem confidente na sua cena surpreendente de
protagonista. Percebe agora ou percebeu naqueles momentos o bem que me faz?
Mesmo que não sejamos nada ou que sejamos apenas dois errantes, de alguma forma
a gente se encontrou no melhor de nós. Estávamos ali costurando nossas
angústias, desejos e os sentimentos mais bestas de um pelo outro e de nós pelo
mundo, costurando entre nós.
E, antes que você possa arrebentar as
linhas tênues que ficaram nos atando daquelas horas até agora, antes que você
lave e penteie seu cabelo - como eu não vou nunca mais fazer - e perca os
resquícios do nosso ápice, confesso: eu quero que fique, certo?
Eu quero que você fique ainda que traga
outras pessoas, eu posso lidar. Ainda que não seja só por mim, afinal, os
outros que nos unem também nos servem para amar. E, mesmo que os dias fiquem
mais difíceis, mesmo que me encontrar com frequência te canse, quero que você
não desista de passar aqui na rua, que nem precise admitir, em caso de
vergonha, e possa até dizer que errou no meu caminho sem querer. Eu só peço
para que não vá embora do nosso mundo mais uma vez, que não suma para uma
casinha no Chile, para que não me deixe te expulsar novamente, pois essa é
minha tendência, você sabe, e sei que pode ajeitá-la pra mim.
Eu sinto a última madrugada e sinto partes
de você e sinto muito do que somos, tudo parece certo, sem ajustes, sem que
tenhamos qualquer definição.
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