novembro 10, 2015

Pronomes Indefinidos de um Blues Mudo

[Disponível no Wattpad]
[Leia ouvindo I Looked at You, The Doors.]
    Ele era somente um rapaz alto no lugar de sempre. Construído pela própria vida: algumas tatuagens nos braços, algumas cicatrizes nas pernas, cabelos pretos emaranhados quase nunca penteados, cor dos olhos perdida pelo contraste das olheiras, e o grande peso dos problemas o faziam não ter tanta postura. Ia sempre carregando uma pasta de mão, raramente usando a alça maior para pendurá-la no ombro direito, e vestia calças beges ou pretas, dependia dos seus sapatos à moda antiga. Não ouvia músicas no ônibus, mas tinha estômago para ler livros do início ao fim do caminho, sem demonstrar qualquer enjôo pelos balanços nas ruas esburacadas. Seu nome era desconhecido.
    O outro era mais baixo, um tanto mais risonho - deixava sorrisos escaparem pelos bancos nos quais sentava para se aquietar com suas músicas no fone de ouvido. Parecia sempre em reforma: cortes novos e cores diferentes de cabelo, um estilo desleixado de roupa, como se qualquer coisa em seu guarda-roupa variado caísse como uma luva, ia agasalhado em dia de frio e com vestes leves no calor. A única coisa rotineira de suas manhãs era pegar o mesmo ônibus do mesmo horário e descer no mesmo ponto. Às vezes até tentava dar uma lida em algo, um conteúdo de prova, uma notícia no jornal, mas passava os olhos e desistia. Ele era sem nome.
    Ele desconhecido, ele sem nome, eles indefinidos. Contudo, curiosos. O desconhecido para o sem nome era alguém, enquanto o sem nome para o desconhecido era aquele. Para um, a especificidade era importante, era aquele e pronto, nenhum outro no veículo de todos os dias importava mais. Para o outro, no meio das generalizações existiam poréns, e seu porém, naqueles tempos, era o alguém alto e bem arquitetado.
    Vez ou outra, no meio das farsas da vida matinal. Farsas, porque demonstravam pureza, como se fossem seres sem bagagens e sem porquês, sem família e sem amigos, apenas dois sobreviventes no meio de figurantes. Vez ou outra, conversavam com seus olhares sorrateiros. Acontecia um bom dia de piscar de olhos pseudo-indiscretos, um dizia "você se atrasou hoje" com seu olhar mais duradouro de pouco mais que quatro segundos, outro dizia "você tem bom gosto para livros" quando deixava escapar um de seus tantos risos involuntários ao olhar intrometido na capa na mão do outro. Eles viviam felizes nos trajetos de trinta e seis minutos.
     Iam bem até o momento em que se estragaram com cumprimentos, rompendo o silêncio que valia mais do qualquer amizade ou relação que poderia se desenvolver. Eles, ainda hoje não sabem ou não querem descobrir, mas a saudade se dá pela inexistência também, por aquilo que não houve. Enquanto não eram nada, já era amor. Sem se conhecerem, poupavam-se de lamúrias, não entravam em competições de quem andava mais angustiado e não precisavam acompanhar os passos tortos e alheios. Apenas caminhavam sozinhos sentindo que tinham alguma coisa matinal, quase especial, que perdurava pelo resto de seus dias comuns.
    A existência deles dentro do ônibus, sem contato, era coexistência. Estavam e permaneciam, como seres intactos, dúbios - sem perderem a aura de mistério. Se fossem mais a frente daquilo, existiriam, imediatamente, um dentro do outro, sem que pudessem escapar para fora do veículo de suas vidas conjuntas depois. Corriam riscos apenas por desejarem conversar. Engoliriam um ao outro ao primeiro sinal de lábios entreabertos.
    Foi o moço mais alto, com seu estilo retrô e sua vontade de conhecer alguém cara-a-cara em um lugar normal com uma conversa qualquer vulgar, do jeito que costumava acontecer dos anos noventa pra trás, foi ele quem falou primeiro ao sentar-se pela primeira vez ao lado do outro no banco de dois lugares. Era o ônibus 547, e eram as poucas horas e muitos minutos da manhã. Quando veio a resposta, nenhum deles percebeu o erro que ambos cometiam. Tornaram-se cúmplices do crime de querer mais do que já tinham. Agiram como se pudessem contornar os traços do acaso, como se mandassem naquelas coisas que ninguém entende como e por qual motivo acontecem, direcionando-se para um encontro decisivo depois de tantos encontros, reencontros e repetições de primeiros encontros corriqueiros - ainda que intensos e de imaginações efusivas.
   Antes, o que tinham eram poucos minutos com muitos segundos não desperdiçados de um encontro casual, redescobriam-se e sondavam as mentes inquietas para descobrirem, no meio do que não diziam, tudo o que poderia estar acontecendo em suas vidas. E, dia após dia, aquilo durava, ia mais longe, aprofundava-se mais, de maneira imperceptível e inenarrável para o mundo exterior. E talvez naquele dia tenham sentido exageradamente a vontade de terem algo que pudessem expor. E romperam com o invisível. Iniciaram com um fim, divorciando-se do casamento mudo para residirem em um abrigo de falatórios com as novas pessoas que se mostraram, nas suas formas mais humanas: cheias, exaustas, incompletas, indecisas, com defeitos, e rodeadas de insuficiência. Não tão boas, não tão legais, não tão bonitas, não tão sinceras.
- Viu que hoje é um motorista diferente?
    A pergunta também dúbia martelou. Em metáfora, o hoje poderia dirigi-los de outra maneira, por ser um "motorista diferente". O rapaz não sabia se tinha esperado por aquilo durante os últimos meses inteiros - uma brecha para adentrar em um diálogo, ou se apenas aproveitou a chance. Deixou escapar sua pergunta e esperou a resposta.
- Vi. - Disse o "vi" mais sorridente de todos.
    Decidiram, ainda não tendo ideia do erro que cometeriam, que se apresentariam um ao outro e explicariam o que faziam e pensavam durante todo aquele tempo, rapidamente anterior e passado, de incerteza. Começaram uma conversa de trocas de nomes, informações sobre trabalho, faculdade e parentesco. Até endereço compartilharam, sem números citados. Falaram e ouviram sem muito receio, apenas aconteceu, como uma coisa que soava quase sufocada ha tempos e agora, naquele momento, explodisse em seus rostos que perderam toda a curiosidade, dando espaço às intenções. O que o moço alto poderia ganhar com o curso de matemática do outro? E como o moço loiro poderia se inserir na família daquele ao seu lado, se ele morava somente com o avô? Como marcariam encontro se um só voltava para casa depois das dez da noite, enquanto o outro dormia às nove? Os interesses investigavam as possibilidades remotas.
    Sucedeu-se que ali, na mesma hora, cansaram-se daquilo que aconteceu. Um tumulto de ideias, um aglomerado de endereços e nomes e títulos e locais e planos e a hora de chegar parecia não alcançá-los com o mesmo ritmo frenético que fazia o ônibus ir se esvaziando. Um deles não falava tão bem, um deles não sabia bem manter um assunto. Um estava meio perdido na vida, outro nem sabia a que veio. Talvez não servissem para serem protagonistas, a não ser que fossem de filme mudo para cegos. Antes daquilo, quais nomes poderiam ter? As possibilidades, como qualquer uma do passado em que ainda não se conheciam por voz, eram melhores, até mesmo mais duradouras.
    Ir embora foi tão fácil: os pés se aceleraram, cada um para o seu rumo com uma vontade de voltarem a serem aquilo de antes. Uma vontade tanta, tamanha, meio estranha. A despedida quase não quis sair em som, porque estavam habituados e confortáveis no adeus tímido e emudecido. Ainda mais, sobre as calçadas e ruas, em seus lugares distanciados, estranharam o fato de não olharem para mais ninguém com aquele olhar que tinham um sobre outro: o incomum encarando o diferente. Era só deles, e perderam. Mas que crime, mas que pecado, mas que troço ruim. Já se conheciam, não havia volta. Ele já era Pedro, ele já era Márcio, os nomes nem combinavam em ordem ou fora dela, nem se encaixavam, mas que horror.
    Do dia seguinte em diante, nenhum deles pegou o ônibus de sempre, nenhum deles se viu outra vez. Não sabiam se esperavam pelo passar do tempo e o provável esquecimento, para que em algum dia, meio sem querer e casualmente, pudessem ter o prazer de se encontrarem como desconhecidos mais uma vez, ou se apenas corriam para longe dos acasos para ignorarem suas culpas de terem acabado com algo tão silenciosamente bom. Fingiram, depois do fim das farsas, que nada aconteceu naquele dia, naquele veículo, naquele banco, no dia em que o motorista assumiu o volante e deixou dois passageiros desviarem seus trajetos.

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