julho 30, 2015

Contínuo


     Por mais que eu escreva como quem respira fundo de olhos fechados, por mais que eu pense como quem corre na contramão de uma rua cheia de carros, por mais que eu ame como quem nunca soube sentir coisa alguma além de fome e sede, isso de gostar tanto de uma pessoa só justifica meus erros. Eu tenho relações que são como a última lâmpada do último poste aceso da vizinhança: visíveis somente para os que perambulam pela madrugada. No semi-escuro, as pessoas tropeçam em mim enquanto ando de mãos dadas a outro, pois não me adequo a espaços para um sendo dois. E no meio dos causos que conto sobre os inevitáveis encontros acontecidos descubro coincidências com encontros que nunca esqueço. Porque aquele que não esqueço já se tornou um filme mudo do qual eu sei de cor os diálogos. Porque cada mínimo diálogo se passa em preto em branco na minha mente e, ainda que pareça não causar nada, continua corroendo por dentro de mim por inteiro.

Flavia Andrade

julho 29, 2015

Fugas vãs



    Algumas vezes viajei para fugir de uns pensamentos meus que eram seus, mas a cabeça ficou no mesmo lugar; só o corpo andou e deitou na primeira cama do destino sem graça nenhuma. Algumas vezes fui tão longe que não soube voltar com meus próprios pés e precisei pedir partes suas para me acompanhar até em casa. Por outras vezes fiquei parada e, sem querer, me desliguei tão depressa que sua imagem sumiu como se todos os retratos tivessem sido queimados. Mas seu rosto sempre se recompõe na minha frente, com os olhos cada vez mais intensos. Deixar para trás não é questão de força, portanto os olhos marejados a cada lembrança não são sinais de fraqueza. Porque eu ando, corro, dirijo, durmo, vivo, penso, escrevo, canto, grito, e você ainda é um acúmulo infinito em sete letras de um nome que não esqueço. Porque eu conheço mais outras pessoas, frequento novos lugares, releio todos os livros da estante e recrio momentos, mas seu cheiro aparece repentinamente em todas essas tentativas de não lembrar dos abraços. Seguir em frente por linhas certas, tortas, cordas bambas, estradas esburacadas ou chão de areia, tanto faz, causa sempre um cansaço que me faz bater na sua porta e aceitar um café. Não ter você me descentraliza do meu próprio mundo, fico pelos cantos arranhando os braços nas paredes. Te peço para trazer remendos e depois digo que não foi nada. Estou sempre andando em círculos até descobrir (qualquer dia numa poesia qualquer) em qual lugar devo me aninhar.

Flávia Andrade

Viagem ao fim da rua



    Quero a passagem só de ida pra sua casa. Então a gente se junta, emenda a cozinha e a sala, arranja utensílios para o fogão, paga a conta de energia, separa um lugar nosso com aparência de biblioteca e cheiro de conhaque. Nas férias a gente põe tudo numa mala só, é pouca coisa, e viaja pra ocupar qualquer lugar vazio. Se acabar a música, a gente canta, grita, ri e até chora. A gente diz aquelas coisas clichês perdidas no meio de tudo quanto é coisa sem sentido que adoramos e sabemos dizer. Arrumei minhas coisas quando você chamou e não embarquei, apenas corro pra sua rua. Eles dizem: ela vai para outro estado. Como se você estivesse um tanto assim bem longe, como se o varal tivesse sotaque, como se o latido dos cachorros tivesse um dialeto incomum. Mas o estado é meu, todo mudado. Estado de entrega, de mistura de quando duas pessoas se compõem uma na outra. A gente divide todo o espaço do estado novo e o mundo fica porta afora, se desprende de nós.


Flávia Andrade

julho 28, 2015

Três Ambientes



    Entramos no tumulto ensurdecedor de uma boate. Bebidas coloridas e músicas sem letras. Me torno um rosto com um risco no lugar do sorriso. Você não cometeu erro algum por me trazer aqui, mas os lugares onde eu preferia estar não me deixam sorrir. Me torno uma ocupação entre a porta de saída e seus braços que tentam me levar. Prometo que fico mais um pouco, bebo na taça, não encaro as outras pessoas. Mas não durará muito tempo. Daqui umas horas vou correr sozinha pelos caminhos que preciso seguir vez ou outra pra me resgatar de um mundo todo que me esvazia. Não posso estar tão próxima de você e tão distante de mim, porque quando me abandono para te pertencer, muito do que sou se perde e não volta; E você sabe, precisamos ser por inteiro aquilo que sabemos ser. Eu não sei estar aqui, em pé, sendo um corpo parado e mudo entre corpos inquietos e gritantes. Não sei estar com você sem cuidados. Pra ser por inteiro, eu preciso fugir daqui, preciso devolver seus gastos, preciso estar só. Então, entramos no vazio ensurdecedor de um fim. Bebidas quentes e choros sem lágrimas. Meu rosto sorri no meio dessas frases que somente tentam significar que "nunca era para ter acontecido" de uma forma mais bonita. Prometa que não fica mais nenhum segundo, já é minha hora de te deixar para trás. Entro, só, no ambiente quieto do sossego. É uma rua quieta. É uma rua que por ora é só minha.


Flávia Andrade

julho 24, 2015

Nada é passageiro


    Digo que não é nada enquanto meus bolsos ficam cheios de textos não entregues, porque minha fala não tem revisão, meu sotaque não respeita vírgulas e minha agonia não me deixa terminar frase alguma. Digo que não é nada porque só de pensar em dizer já sinto todo o tumulto, e você não ficaria para escutar. Digo que não é nada porque também guardo choro e soluço, guardo grito e suspiro, guardo uma respiração profunda que vai significar todas aquelas coisas que você não poderá entender. Você nada diz sobre meus nadas, apenas ouve e dá passos para trás, só pensa em continuar seu dia sem questões nenhuma sobre o que não digo. Uma insistência, amor, cairia bem. Porque nada é passageiro, é uma mentira de nada que voa com o primeiro vento que entra pela nossa janela. Pergunte se tenho certeza, pergunte se falo sério, diga que vai ficar até eu dizer.

Flávia Andrade

julho 21, 2015

Esfriou-se


    Nos tornamos café morno sem açúcar e não conseguimos mais nos digerir. Estamos entalados em nossas gargantas sem socorro. Estamos sufocados com o gosto amargo na boca. Estamos precisando vomitar de volta essa coisa ruim.

Flávia Andrade

julho 18, 2015

Aquele des(caso)


    Sentia que ele me confortava como se eu fosse a única pessoa no mundo precisando daquela atenção. Ao mesmo tempo, ele respondia a todas as mensagens de tantas outras pessoas somente com as frases feitas que sabia de cor. Eu gostava de quando me ouvia com uma paciência de quem parecia gostar tanto a ponto de suportar. Contudo, ele me ouvia calculando o momento exato em que pudesse fugir do assunto incômodo. Estávamos no mesmo ambiente, mas com mentes focadas em outros mundos, emoções enganadas e almas dispersas. Éramos dois estranhos: um que corria em busca de outro que não existia. Mas ele me fazia bem. Eu sorria no caminho para lugares tediosos por qualquer coisa que ele costumava dizer para me convencer a ir. Eu sorria quando nada parecia dar certo porque ele dizia que viria me visitar para melhorar o dia. Não era sempre que aparecia por aqui, mas a expectativa me salvava por algumas horas. Eu sorria quando ninguém mais se importava, porque ele continuava dizendo que sempre estaria por perto. Mas ele também dizia por aí que eu andava muito dependente, precisando me estabilizar em qualquer outro alguém, dizia que precisava me deixar para trás antes que mais meses se passassem. Começou a ser menos do que eu pensei que fosse, até o ponto em que não era mais quem eu conheci. Eu fiquei com as lembranças boas, ele nunca teve nenhuma. Guardei as palavras bonitas, ele já havia se cansado delas há tempos. Metade de nós acreditava, outra metade apenas mentia.

Flávia Andrade

julho 17, 2015

Depois das onze


    Hoje você está com aquele sorriso triste que é de canto, que te faz olhar para baixo ao curvar um pouco a cabeça. Me bate um aperto, a imagem não me deixa dormir. Está com as palavras monossilábicas guardadas no bolso, tirando uma por uma com cautela, como se o estoque fosse pouco. Coisa de quem sai de casa despreparado, esquece a coragem em cima da mesa e não avisa quando vai voltar. Enquanto anda comigo, vem trazendo segredos de dias atrás que não pode contar em voz alta, só pra não perceber que são de verdade. Acaba escondendo de você também, deixando no fundo da mente e pensando nos problemas menores. Vem guardando choros, gritos e um conhaque para depois das onze. Mas diz que vai me levar. Hoje estarei com um sorriso maior, com os dentes tortos à mostra, para te causar de jeito manso uma calmaria que não consegue ter por si só. Vou falar um pouco mais. Sobre a teoria do big bang, mapa astral e bandas inglesas, tudo o que não sei de cor. Vou parafrasear livros que não existem e cantar músicas inventadas, de qualquer maneira que eu possa te dizer as coisas que você tem medo que eu diga por mim. Prometo, depois das onze vamos ficar bem, hoje já vai passar.


Flávia Andrade

coisas-do-coração


    Entre a lógica e as coisas-do-coração, eu prefiro sentir. Sentir muito, ao extremo. Exagerar cada palavra que sai de mim para alcançar qualquer pessoa que saiba ou não compreender. Porque eu vou ao mais distante do que uma pessoa pode querer alcançar, com um coração três vezes maior que meu corpo. Porque eu tenho tanta coisa para dizer que minha voz pouco aguenta e não há tantas paredes para encher desses rabiscos gritantes de poesia sem rima. Porque toda vez que encontro aquele alguém, não é só metade de mim que se tumultua, é por inteiro. Nesse pequeno espaço para gente que sente mais do que vive, e vive sem pensar no quanto sente, há um círculo de pessoas dizendo para voltarmos atrás. Uma multidão avisando que nada vai dar certo sem equilíbrios lógicos. Um tanto de gente alertando que instinto e impulso são para pré-perdedores. Que não nos levará a lugar algum. Mas entre a lógica e as coisas-do-coração, eu prefiro sentir. Sentir que há uma chance enorme dos riscos não valerem a pena, e uma chance maior ainda, maior do que as coisas que não consigo mais guardar em mim, de que valha tanto a pena que eu não queira nada além.

Flávia Andrade

Construção do Esquecimento


    De repente, você está amando daquela vez como se fosse a última e morrendo na contramão atrapalhando o tráfego, como canta Chico Buarque. De repente, a experiência do fim é uma sequência de últimas melancolias. O último beijo sem emoção, a última batida firme na porta, a última vez olhando para ele descendo a rua, indo embora sem dizer que vai voltar, a última discussão e a decisão silenciosa e perturbada de quem dirá a última frase. Mas sem avisos, a frase acaba sendo sua. 

    O assunto nunca se encerra. Os dias vão passar e você ainda terá em mente aquelas boas respostas que na hora não soube dizer. As semanas vão passar e você encontrará nas lembranças do diálogo alguns desabafos por parte dele, que não havia notado, e vai querer correr de volta para dizer que sente muito. Os meses vão passar e você terá entrado em discussões fundamentais consigo mesma sobre quem errou primeiro, quem mentiu primeiro, quem desistiu primeiro. Mas a última frase foi sua. Quando notar que se aproxima de completar um ano, um desespero emocional latente vai começar a bater. Porque em um ano, ainda foi difícil pensar em uma frase só. Em um dia só. Em uma pessoa só. 

    De repente, por mais que num dia ensolarado qualquer as últimas coisas tenham acontecido, você ainda vive cada segundo do que já houve. O assunto não se encerrou e você não soube por fim. De repente, você tem mais últimas frases a dizer. Mais calculadas, repensadas, elaboradas. Mas a vida uma hora vai se encerrar, a saudade uma hora vai se encerrar, e como tudo se encerra, você sabe que pode dar fim a um dos dias em que algo acabou. Você pode retornar aquele lugar e criar novas memórias. Pode ser o lugar para onde levará toda pessoa especial que conhecer, e ele não será mais o aconchego para imaginar uma pessoa só. Uma pessoa esquecida. Você pode iniciar seus planos naquele mesmo dia e, da próxima vez, completará um bom ano de bons acontecimentos. De repente, você pode amar daquela vez como se fosse a única.

Flávia Andrade

julho 16, 2015

Sobre te fazer o bem que você me faz


    Se você me ligar às quatro da manhã, eu vou atender. Talvez de mau humor, talvez dizendo alguns palavrões que te façam rir, mas não vou rejeitar a ligação depois de ler seu nome na tela. Porque sei que é insone. Sei do grande feito de ter assistido todos os filmes que passam na sessão da madrugada, e da problemática de não conseguir ler livros depois que anoitece porque não se concentra. Então eu atendo e digo uma coisa qualquer confortadora ou risível.

   Se você me pedir para te acompanhar ao mercado, eu vou. Talvez demore para colocar uma roupa de sair na rua, talvez antes disso pergunte por que é que você não vai sozinho, mas acabarei indo. Porque sei que morre de vergonha de falar com estranhos e se complica até para pedir meio quilo de alcatra no açougue. Sei que não gosta de fazer compras sozinho porque não difere marcas e vira uma indecisão ambulante na sessão de doces. Então eu encho seu carrinho e te convenço na fila de que é a  melhor compra da sua vida.

   Se você disser que não sabe para onde ir, mesmo depois que eu já tenha entrado no carro e colocado o cinto de segurança, eu vou continuar ali, esperando pelo destino no qual vai me levar. Eu vou confiar em gostar, seja o rumo qual for. Eu sei que, mesmo sem saber, você sempre chega a algum canto e faz dele o melhor lugar pra gente. No meio dos defeitos, você tem esse dom de deixar tudo melhor. 

    Se você segurar na minha mão durante o show que eu te convenci a ir por mais de um mês, eu vou saber que estará querendo ir embora. Eu vou esperar tocar só mais uma música e vou te tirar de lá. A gente pode ouvir o mesmo som no seu rádio no quarto, e sei que no escuro só comigo você vai acabar dançando sem ritmo como não fez na multidão.

    Se você disser coisas sem sentido no meio de um desespero emocional, não precisa pedir desculpas pela confusão. Eu vou olhar para os seus olhos, porque é a única parte de você que fica calma quando seu mundo parece desabar. Então vou dar um jeito de deixar a gente em ordem, vou dar meus pulos pra gente conseguir uns remendos.

    Mas, por favor, não se arraste sozinho para os tumultos que sente, vez ou outra, quando se esquece do quanto importa para um mundo inteiro dentro de mim. Não se esconda para gritar todo o sufoco que te invadir por inteiro até que não dê mais para manter guardado. Não chore no meio de um surto claustrofóbico por ter medo de correr até mim. Eu vou estar aqui. Acompanhando todos os seus jeitos de deixar o mundo ao contrário, e me virando de ponta cabeça para te ver. Eu vou estar aqui. Entre as coisas tantas que não te deixam ser só mais um na minha vida e as outras coisas exageradas que não me deixam te deixar.

Flávia Andrade

Necessidades


— Do que mais você precisa? — você me pergunta com todo o ar de superioridade. 

    Eu precisei ter duas gripes, ir ao posto de saúde, receber a medicação de sempre em ambas as vezes. Precisei levar o irmão mais novo da minha amiga para passear, precisei limpar a casa inteira quando a visita ligou dizendo que chegaria em dez minutos. Quase uma surpresa! Precisei organizar uma festa surpresa ao mal agradecido que nunca me deu presentes. Precisei reprovar duas vezes no vestibular e desistir de uma faculdade depois que finalmente passei. Precisei esquecer a carteira e só perceber isso na porta da boate quando eu não a encontrei para pagar minha entrada, e precisei aceitar ajuda do cara estranho que passou a noite inteira tentando me beijar como retribuição dos vinte reais de open bar. Precisei torcer o pé na entrada da sala do gerente, no dia da minha primeira entrevista de emprego. Precisei chorar cinco ou seis vezes pela mesma pessoa até decidir seguir em frente. Precisei pegar o ônibus errado duas ou três vezes, dormir no ônibus certo e passar reto pelo meu destino. Aliás, sobre o destino, eu precisei andar por todos esses caminhos tortos para numa sexta-feira de manhã decidir ir à padaria comprar pães doces e te ver. Precisei me apaixonar por você como me apaixono por quase todo cara com sorriso bonito que não sei o nome. Precisei ouvir um oi. Eu precisei te conhecer melhor depois desse dia e precisei te ligar duas vezes por ansiedade de te encontrar e precisei aceitar o pedido de namoro. 

— Eu sempre fiz tudo por você, do que mais precisa? — e você está perguntando outra vez, irritado. 

    Eu precisei pensar em como eu era antes de você. Precisei dizer que precisava fazer o que eu costumava gostar de fazer. Eu precisei dizer vinte vezes o quanto gostava de flores até finalmente receber uma rosa no dia do meu aniversário. Eu precisei ir à psicóloga desabafar sobre você não ter aparecido no aniversário do ano seguinte. Precisei dizer a minha família que estávamos bem, mesmo sentindo uma dor incômoda do fundo do peito, coisa de quem mente sobre sentimentos. Eu precisei receber três ligações estressantes até parar de atender. Precisei sair para espairecer e entrar outra vez na padaria para comprar pães doces e sair de olhos fechados para não conhecer mais ninguém, para não se apaixonar outra vez. Eu precisei avisar a mim que tudo deveria ter um final, pois sempre sou a última a saber do que eu realmente quero. Precisei não te ver mais. Precisei ouvir essas suas perguntas para buscar respostas, explicações, dizeres. 

— Eu preciso achar caminhos certos dessa vez. — Respondo, por fim.

     Você precisou não entender coisa alguma para compreender que não sou mais quem você conheceu. Que nunca fomos quem achávamos que fomos. Que apenas precisamos ser. Mas as necessidades se descarregam depois de tanto tempo acumuladas e o que era preciso se esvai.

— Certo. 

— Boa noite. — Me despeço.

— Boa. 

— Boa sorte. — Digo.

— Obrigado. — Você diz e anda para fora da casa, da minha vida, de tudo o que foi necessário para aprender mais essa coisa curiosa sobre as pessoas: só sorriem enquanto você dá a elas o que precisam.

Flávia Andrade

Acumuladora de silêncios


    Eu pertenço ao número tímido de pessoas que não sabe o que está fazendo com a própria vida. Eu estou no lugar alto da minha vivência, olhando tudo abaixo e me perguntando no que essas coisas todas podem resultar. Porque ainda sou quem pega o ônibus errado como se assim pudesse sair da rotina, quem se apaixona por quem não vai voltar como se assim pudesse ter uma grande história de amor. Eu sou a pessoa dos olhos tristes que sempre tem um lamento longo sobre o que não anda dando certo, e poucos minutos são insuficientes para reclamar das malícias de um universo que conspira contra. Fugir daqui, fugir deles, fugir de tudo até não encontrar mais saídas e se ver presa na própria fuga, típico de mim. Adiar a vida e viver mal até que coisas boas apareçam, típico de mim. Eu sou a pessoa que não para de mexer no cabelo porque tem algum incômodo corpo afora que só pode ser expressado na inquietude das mãos. Eu sou a pessoa acumuladora de silêncios que não dirá coisa alguma sobre o que não leu. Eu pertenço ao número grotesco de pessoas tímidas que não pedem informações e, assim, não se movem.


Flávia Andrade

Quis que fosse


     Eu me encontrei nas páginas dos escritores esquecidos, nos blues que tocaram em lugar nenhum e nos filmes sem investimentos. Eu te levei para me conhecer nos lugares abandonados que ninguém nunca gostou de visitar, e eu disse: podemos ficar por aqui. Quis que você entendesse, no intervalo de horas não contadas, que eu era somente um erro vulgar. Quis que você gostasse. Então você me buscou, me apresentou os livros mais lidos, as músicas perdidas em baterias e os filmes mais caros que duas vidas. Você me trouxe ao lugarzinho movimentado no meio de uma rua cheia e disse poesias sobre tumulto e silêncio. Podemos estar em qualquer lugar, você disse. Quis que eu percebesse, entre o barulho do tráfego e o som chiado do rádio, que você não se importava com as minhas estranhezas. Quis que a gente ficasse.

Flávia Andrade

julho 15, 2015

Não reportados

     Medo de mudar, essa gente já tem. Medo de ir na direção contrária e não chegar a lugar nenhum. Medo de gritar palavrões e não significar coisa alguma. Medo de estar desperdiçando a vida. Mas a gente vive mudando pelos caminhos confusos, gritando tudo o que vem à cabeça. Afinal, o que é viver? A gente faz o que não pensa, porque pensar demais é adormecer no meio do nada. A gente diz o que não quer, porque querer dizer consome muito tempo. E nós nos transformamos, nos tornamos vilões em dia de ser herói e somos heróis quando ninguém mais vê. Nós somos os perdidos sorridentes no meio das tragédias, mas antes que possamos nos tornar manchete, mudamos, viramos as costas para o que aprendemos, deixamos de ser. Medo de mudar, essa gente já tem, mas nós não teremos.


Flávia Andrade

julho 14, 2015

Reviravolta

    Porque eu era solidão silenciosa, enquanto você era aqueles braços gesticulosos no meio de uma multidão imediatista que não media palavras. Porque eu era um conjunto de olhos baixos, boca semiaberta e respiração pesada, enquanto você rodeava o mundo com os olhos estalados e rindo, até se esquecendo de respirar. Porque depois de um tempo eu cansei de ser uma vidinha em pensamento, e comecei a gritar aos quatro cantos. Porque depois de um tempo, você desapareceu. Eu continuei a agir sem planos, a andar na contramão e dançar no alto de prédios. Porque quando você voltou, não me reconheceu mais. Mas se perguntar meus motivos, eu digo que sempre fui assim, mas você não adentrou meu corpo e alma para perceber. Você ficou por fora, como todos os outros, tranquilo como quem não ouve a contagem regressiva de uma bomba que vai explodir. Meus porquês não te darão respostas exatas, meus porquês te deixarão perdido. Porque agora, você é uma solidão silenciosa rodeando a própria sombra, tentando saber como se sai do ciclo vicioso. Eu não volto para ajudar, não te encontro mais, ando muito distante. Porque agora eu percorro os bons caminhos que você não soube percorrer, pois estava ocupado sentindo tanta pena de quem poupava assunto. Porque agora eu sei onde estou e sempre pertenci a este lugar.

Flávia Andrade

Quanto para o fim?

Aquela visita sua, um copo d'água, uma conversa curta.
Aquela vida nossa, uma relação errada, nada para dizer.
Quantos dias para o dia em que vou esquecer?
Quantos meses para o mês em que completa um ano?
Quantos anos para apagar aquele que já passou?
Aquela aproximação sua, nenhum olhar, uma frase longa.
Aquele riso meu, um nervosismo, palavra alguma.
Quanto tempo para voltarmos a ser certos?
Quanto erro para substituir os outros erros?
Quanta coisa pra tentar mudar?
Aqueles passos embriagados para longe de mim, distante da gente,
uma fuga inexata para o nada que nunca fomos,
quanto desentendimento para três horas de conversa?
Quanto desperdício de vida para três minutos?
Quanto desgaste por chamar seu nome?

julho 13, 2015

sem trégua

eu tive um pouco de cautela, um pouco de canalha, um pouco de conhaque. eu fui meio bebida quente, meio cabeça fria, meio deixada para trás quando o mundo começou a rodar e as pernas bambearam e o café ficou morno. eu perdi a visão, ceguei por horas, enquanto você ia embora para a casa na qual não me convidou para entrar. eu dobrei a esquina, sentei no lugar perdido, porque queria que você voltasse e colocasse os braços ao redor e me levasse para o sofá do canto, perto dos violões. eu estava numa fuga inventada para que você me buscasse com os olhos de quem me queria por perto, mas você desceu a rua, não olhou para cima, não pagou outra cerveja. desculpa, por ter errado, gritado, chorado tanto, por ter sido mais eu do que você poderia conhecer nas conversas casuais de encontros que eu planejava o tempo todo. desculpa, pelos textos sem fim, pelo livro publicado, por ter escrito sobre você em tanta página que não quis ler. desculpa, pelas vezes em que fui uma velha ranzinza reclamando sobre o mundo, o aquecimento global e as pessoas que não ligam no dia seguinte, por ter pensado que assim você veria em mim todas as preocupações sobre o que me dava um medo tremendo de viver. desculpa, pelos pedidos de desculpa que duravam horas enquanto você se arrumava para mais um dia sem peso algum na consciência, para mais um dia que eu transbordava todos os sentimentos que você nunca teve por mim. desculpa por todos os exageros, os afogamentos de mágoas que viraram uma dança escandalosa no meio da rua e por todas as vezes que eu disse seu nome como se pudesse te trazer pra mim. e por todas aquelas outras coisas erradas que fiz em tentativas inconsistentes e inconscientes de ficar mais um pouco e mostrar que eu poderia ser melhor. me desculpa pelo fim cansativo e estressante e pelos dias que se seguiram como se nunca fossem acabar. me desculpa, mais uma vez, agora que já acabou, por tentar voltar atrás e me recompor para nos reconsertar.

flávia andrade
pra você fui ressaca matinal. pra mim, você foi um porre duradouro de incontáveis madrugadas. eu tentei te deixar por tanto tempo que encontrei sobriedade outra vez. aqui estou eu, no horário do almoço com uma garrafa de vinho aberta, tentando te reencontrar pra dizer todas essas coisas que não se aquietam nem que eu durma e suma e me jogue da ponte do prédio do hotel da sacada da mureta da tua casa, mas eu penso em me jogar na sua frente e dizer: tudo bem, eu desisto, vamos ficar bem mais uma vez. mas eu penso em dizer: eu sei que errei e você foi um filho da puta que errou também, e eu sei que a gente daria um tiro na cara do outro se carregássemos armas para todos os lugares em que já nos cruzamos, mas vamos dar certo dessa vez. 

julho 10, 2015

Corrida


    Ele corre observando o nada da paisagem verde e azul, grama e céu a sua frente, enquanto pensa no nada de sua vida azul por inteiro. Azul escuro e oceânico. Ele está morrendo de coisas inofensivas e por armas brancas, quase transparentes, mas corre para se sentir vivo. É clichê. Corre com os braços próximos ao corpo, dobrados, punhos fechados e boca semiaberta enquanto respira o ar poluído de seus planos que falharam e o rodeiam, planos contaminados de maus pensamentos. A cabeça não se mexe, o pescoço está enrijecido com veias quase saltando porque os pés estão doloridos e a dor o toma por inteiro. O desgaste do tênis provoca a sensação de estar pisando descalço na rua suja. Sensação. Ele tem vivido de sensações. Parece sempre estar perdendo algo que nem ao menos teve, perdendo quem prometeu ficar pela eternidade, deixando para trás aquilo que traz pregado no corpo. Sente como se estivesse se afogando no mar de água salgada toda vez que entra debaixo do chuveiro e não se acalma. E, às vezes, parece que sua pele queima. Sente como se estivesse sufocando quando se cobre no frio, quando usa cinto e camisa de botões.
Ele para.
Ele acende um cigarro.
Ele deita no meio da estrada e fuma. A vida está perdida.

Flávia Andrade

O que ficou


     Tem uma parte mínima aqui dentro, um pedacinho salvo, que ainda é o melhor de mim. Uma parte que você não levou no meio dos seus cabelos ou grudada nas suas roupas, que você não tomou com seu café, não atropelou com o carro e nem perdeu em alguma boate. Uma parte que ainda vive para o carnaval de fevereiro e, mesmo assim, talvez se junte ao clube dos esquecidos. Aquele pedacinho de razão que vai me levar a algum lugar, por mais que desconheça a direção. Entre todas as conversas longas sobre você, essa parte vai apontar que estou sã e salva, quase sem remendos. É mínima, porque se fosse por inteiro não teria graça, e vai me deixar livre para ser qualquer novo alguém que mude sempre.

Flávia Andrade

julho 09, 2015

Que não devia ter sido


    Com o vidro fechado a porta do carro bate e eu bato o portão, deixamos que os gritos se acumulem para a briga de amanhã que vai reiniciar por hoje. Mas a gente sabe que até o fim da semana já devemos ter fim e até o fim do mês já devemos ter esquecido, por culpa de uma memória torturada de nãos. Não lembre, não pense, não sinta. Porque sabemos que até o fim do ano já devemos ter superado, precisamos conhecer outros e realizar todos aqueles encontros que desmarcamos. Com as casas trancadas ninguém entra e nos tornamos visitas perdidas nas ruas, e sabemos que vamos andar mais um pouco até encontrar qualquer coisa que substitua um ao outro. Antes disso tentaremos nos salvar, ao mesmo tempo em que os nós e laços e embrulhos serão desfeitos. A partir de agora o movimento é retrógrado e, depois, vamos partir. Seremos desconhecidos com lembranças fincadas, seremos dois que não errarão o caminho outra vez.

Flávia Andrade

julho 06, 2015

gosto que não desce garganta abaixo

     não vejo os dias passarem, meus olhos estão cheios dessas coisas de ontens e amanhãs e não se fazem presentes. não sinto o tempo mudando, é só um frio de janeiro a janeiro por dentro de toda roupa e pele. não sei o quão distante você já está de mim, porque ainda vivo aquela memória de dezembro, e aquela memória de fevereiro, e a outra memória quase perdida de agosto. não calculei as semanas, mas algo me deixou pra trás do mundo inteiro, numa realidade distante com escritos repetitivos. se você ainda lê, me resgata daqui, diz que não vai embora outra vez até que eu me recomponha, até que eu saiba entender que hoje ainda é nosso fim.

flávia andrade

de uma noite só

traz mais um vinho, ainda são três e quarenta e seis da manhã e cedo demais pra ligar seu carro pra longe daqui. meu celular já larguei num canto distante da casa e prum canto mais distante ainda eu quero te levar. pra dar jeito na vontade que acumulei a noite toda. deixa eu abrir mais esse vinho pra gente molhar a boca, pra gente se esquentar nesse frio. deixa eu abrir sua camisa, pra gente molhar a pele, pra gente se esquentar nesse frio. só fica tarde quando a música parar de tocar e os gemidos cessarem e o suor escorrer e a gente cansar. só fica tarde quando precisarmos de um lugar pra deitar e o chão da sala não for confortável, quando eu te deixar abrir a porta do carro e adentrar. só fica tarde quando você ligar amanhã pra refazer a conversa de ontem. cedo é deixar pra trás, cedo é viver sem eu por perto a cada hora, cedo é um dia perdido no nosso ano em que aproveitamos cheios de vinho. não deixe entardecer, não liga não.

aveup

o livro tem capítulos que terminam como começam, mesmo que subvertidos. o livro tem obsessão própria pelo número três e seus múltiplos. o livro adora repetições. no livro a vida é uma puta, e esse é o nome, essa é a realidade. o livro acontece como um relâmpago no céu pruma criança que vê e não entende o motivo, mas não é para crianças. o livro é contraposição e talvez sua capa deva ser a contra-capa, a contradição. o livro é mais que paradoxo, alguma coisa ainda não elaborada que está sendo escrita aos prantos de uma protagonista em apuros emocionais. o livro precisa disso que escrevo agora pra fazer um mínimo de sentido a mim, logo eu que o escrevo e não o entendo.

"Eu falo, não me calo, tiro sarro"



    Se for pra falar das coisas que ninguém mais sabe e que quero te mostrar, digo sobre a quantidade de horas que consigo pensar numa pessoa só durante o dia. Falo do jeito que tento aprender como alguém é, pra entrar na vida dele e me encaixar entre os defeitos e as coisas não resolvidas. Explico os olhares, as caras, os risos e o vocabulário que tenho por perto de gente que gosto, como fica a colocação das palavras e o desassossego das mãos. Só não revelo segredos como as mais de vinte músicas que dei um jeito de pregar na nossa vida pra virar trilha sonora, porque eu ouço sozinha com medo de que pare de tocar. Nem conto as histórias que quase me desviaram do caminho que se encontrou com o dele, pois o que importa é o que nos trouxe até aqui. Mas se for pra não fingir nada e ser por inteiro quem sou, se for pra mostrar toda verdade e todo modo, eu ofereço um tempo infinito de vida pra contar.


Flávia Andrade

Pra ser



    Avisa lá fora que o dia aqui dentro está bem melhor, que a gente deu jeito de desligar a tevê e tirar o telefone do gancho pras notícias ruins não chegarem. Diz que depois que a gente briga, volta duas vezes melhor. Fala que choro fraco não conquista e a gente só se enche de riso. Dá um conselho calmo aos desesperados, fala baixo pra ouvirem bem de perto. E depois volta, volta pra dizer que depois do portão a vida continua indo bem, pra ver se meu susto passa, pra eu conseguir sair outra vez.

Flavia Andrade

julho 03, 2015

Bloqueio Criativo



    Você conhece o barulho de quando desliza os dedos pelo teclado entre a tecla de caps lock e a tecla enter. Você vê por dentro da tela, por fora da tela, por cima da tela, por baixo da tela. Você encara a página em branco. A fonte, o tamanho da fonte, o espaçamento, as larguras, já está tudo ajustado. O relógio marca a hora apropriada, a data esclarece o tempo perdido e o tempo que virá e você não pode perder outra vez. Sabe que precisa escrever. Os motivos são tantos! Precisa escrever para ter no estoque de textos que comprovam que é escritor, precisa escrever para conseguir uma aparição naquele blog conhecido, precisa escrever para terminar de uma vez o livro que começou em dois mil e um, precisa escrever porque não pode ficar parado achando que vida de escritor é um eterno cochilo na rede, precisa escrever porque é isso que você faz. 

    Já teve a ideia, já pensou no texto, já sabe o que quer. Sabe gramática por memória de leitura e não por regra (no máximo aquelas três ou quatro regras que aprendeu na escola), mas sabe. Já escreveu antes, se conhece o suficiente para saber como flui. Mas não flui! 

    Está parado. Bate fome, bate sono, bate cansaço, começa a chover, vira temporal, você levanta pra fechar as janelas, verifica se o carro está bem fechado, dá uma olhada nos cachorros e nos gatos, passa pela geladeira, abre, reflete sobre a vida olhando para o pote de manteiga em cima das marmita do almoço de semana passada. E você está perdido dentro de você, dentro daquela casa, dentro da vida de escritor. E você não tem outro rumo pra tomar, é só aquilo ali que não está conseguindo fazer. 

    Você se sente, além de desajustado, um trapo por ter uma única função: escrever, e infelizmente, não conseguir cumprir essa única maldita função — que há uns tempos atrás, quando conseguia terminar um conto em um dia, era o seu maior prazer. 

    Então o dia acaba e você dorme. 

    No outro dia está no ônibus, indo para sua faculdade de Letras, e as palavras do texto que não foi escrito ontem correm por sua mente como se você fosse só um corpo recebendo um espírito escritor e você não pode pedir para o motorista parar e não dá pra anotar tudo com o veículo em movimento, que aliás, agora parece um trator — e antes você nem tinha reparado no quanto aquilo se mexe para cima e para baixo enquanto se move. E bate um desespero de esquecer tudo. 

    Mas você chega ao ponto, em algum momento tinha que chegar. Então corre para o lugar mais próximo onde pode sentar, anota tudo, sente um alívio. Passou. Como uma picada de agulha, como ir ao banheiro depois de várias latas de cerveja, como acordar de um pesadelo. E você ama ser escritor novamente.

Flávia Andrade
Tecnologia do Blogger.
Andrade © , All Rights Reserved. BLOG DESIGN BY Sadaf F K.