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[Leia ouvindo I
Looked at You, The Doors.]
Ele era somente um
rapaz alto no lugar de sempre. Construído pela própria vida: algumas tatuagens
nos braços, algumas cicatrizes nas pernas, cabelos pretos emaranhados quase
nunca penteados, cor dos olhos perdida pelo contraste das olheiras, e o grande
peso dos problemas o faziam não ter tanta postura. Ia sempre carregando uma
pasta de mão, raramente usando a alça maior para pendurá-la no ombro direito, e
vestia calças beges ou pretas, dependia dos seus sapatos à moda antiga. Não
ouvia músicas no ônibus, mas tinha estômago para ler livros do início ao fim do
caminho, sem demonstrar qualquer enjôo pelos balanços nas ruas esburacadas. Seu
nome era desconhecido.
O outro era mais
baixo, um tanto mais risonho - deixava sorrisos escaparem pelos bancos nos
quais sentava para se aquietar com suas músicas no fone de ouvido. Parecia
sempre em reforma: cortes novos e cores diferentes de cabelo, um estilo desleixado
de roupa, como se qualquer coisa em seu guarda-roupa variado caísse como uma
luva, ia agasalhado em dia de frio e com vestes leves no calor. A única coisa
rotineira de suas manhãs era pegar o mesmo ônibus do mesmo horário e descer no
mesmo ponto. Às vezes até tentava dar uma lida em algo, um conteúdo de prova,
uma notícia no jornal, mas passava os olhos e desistia. Ele era sem nome.
Ele desconhecido,
ele sem nome, eles indefinidos. Contudo, curiosos. O desconhecido para o sem
nome era alguém, enquanto o sem nome
para o desconhecido era aquele. Para
um, a especificidade era importante, era aquele e pronto, nenhum outro no
veículo de todos os dias importava mais. Para o outro, no meio das
generalizações existiam poréns, e seu porém, naqueles tempos, era o alguém alto
e bem arquitetado.
Vez ou outra, no
meio das farsas da vida matinal. Farsas, porque demonstravam pureza, como se
fossem seres sem bagagens e sem porquês, sem família e sem amigos, apenas dois
sobreviventes no meio de figurantes. Vez ou outra, conversavam com seus olhares
sorrateiros. Acontecia um bom dia de piscar de olhos pseudo-indiscretos, um
dizia "você se atrasou hoje" com seu olhar mais duradouro de pouco
mais que quatro segundos, outro dizia "você tem bom gosto para
livros" quando deixava escapar um de seus tantos risos involuntários ao
olhar intrometido na capa na mão do outro. Eles viviam felizes nos trajetos de
trinta e seis minutos.
Iam bem até o
momento em que se estragaram com cumprimentos, rompendo o silêncio que valia
mais do qualquer amizade ou relação que poderia se desenvolver. Eles, ainda
hoje não sabem ou não querem descobrir, mas a saudade se dá pela inexistência
também, por aquilo que não houve. Enquanto não eram nada, já era amor. Sem se
conhecerem, poupavam-se de lamúrias, não entravam em competições de quem andava
mais angustiado e não precisavam acompanhar os passos tortos e alheios. Apenas
caminhavam sozinhos sentindo que tinham alguma coisa matinal, quase especial,
que perdurava pelo resto de seus dias comuns.
A existência deles
dentro do ônibus, sem contato, era coexistência. Estavam e permaneciam, como
seres intactos, dúbios - sem perderem a aura de mistério. Se fossem mais a
frente daquilo, existiriam, imediatamente, um dentro do outro, sem que pudessem
escapar para fora do veículo de suas vidas conjuntas depois. Corriam riscos
apenas por desejarem conversar. Engoliriam um ao outro ao primeiro sinal de
lábios entreabertos.
Foi o moço mais
alto, com seu estilo retrô e sua vontade de conhecer alguém cara-a-cara em um
lugar normal com uma conversa qualquer vulgar, do jeito que costumava acontecer
dos anos noventa pra trás, foi ele quem falou primeiro ao sentar-se pela
primeira vez ao lado do outro no banco de dois lugares. Era o ônibus 547, e
eram as poucas horas e muitos minutos da manhã. Quando veio a resposta, nenhum
deles percebeu o erro que ambos cometiam. Tornaram-se cúmplices do crime de
querer mais do que já tinham. Agiram como se pudessem contornar os traços do
acaso, como se mandassem naquelas coisas que ninguém entende como e por qual
motivo acontecem, direcionando-se para um encontro decisivo depois de tantos
encontros, reencontros e repetições de primeiros encontros corriqueiros - ainda
que intensos e de imaginações efusivas.
Antes, o que tinham
eram poucos minutos com muitos segundos não desperdiçados de um encontro
casual, redescobriam-se e sondavam as mentes inquietas para descobrirem, no
meio do que não diziam, tudo o que poderia estar acontecendo em suas vidas. E,
dia após dia, aquilo durava, ia mais longe, aprofundava-se mais, de maneira
imperceptível e inenarrável para o mundo exterior. E talvez naquele dia tenham
sentido exageradamente a vontade de terem algo que pudessem expor. E romperam
com o invisível. Iniciaram com um fim, divorciando-se do casamento mudo para residirem
em um abrigo de falatórios com as novas pessoas que se mostraram, nas suas
formas mais humanas: cheias, exaustas, incompletas, indecisas, com defeitos, e
rodeadas de insuficiência. Não tão boas, não tão legais, não tão bonitas, não
tão sinceras.
- Viu que hoje é um motorista diferente?
A pergunta também
dúbia martelou. Em metáfora, o hoje poderia dirigi-los de outra maneira, por
ser um "motorista diferente". O rapaz não sabia se tinha esperado por
aquilo durante os últimos meses inteiros - uma brecha para adentrar em um
diálogo, ou se apenas aproveitou a chance. Deixou escapar sua pergunta e
esperou a resposta.
- Vi. - Disse o "vi" mais sorridente de todos.
Decidiram, ainda não
tendo ideia do erro que cometeriam, que se apresentariam um ao outro e
explicariam o que faziam e pensavam durante todo aquele tempo, rapidamente
anterior e passado, de incerteza. Começaram uma conversa de trocas de nomes,
informações sobre trabalho, faculdade e parentesco. Até endereço compartilharam,
sem números citados. Falaram e ouviram sem muito receio, apenas aconteceu, como
uma coisa que soava quase sufocada ha tempos e agora, naquele momento,
explodisse em seus rostos que perderam toda a curiosidade, dando espaço às
intenções. O que o moço alto poderia ganhar com o curso de matemática do outro?
E como o moço loiro poderia se inserir na família daquele ao seu lado, se ele
morava somente com o avô? Como marcariam encontro se um só voltava para casa
depois das dez da noite, enquanto o outro dormia às nove? Os interesses
investigavam as possibilidades remotas.
Sucedeu-se que ali,
na mesma hora, cansaram-se daquilo que aconteceu. Um tumulto de ideias, um
aglomerado de endereços e nomes e títulos e locais e planos e a hora de chegar
parecia não alcançá-los com o mesmo ritmo frenético que fazia o ônibus ir se
esvaziando. Um deles não falava tão bem, um deles não sabia bem manter um
assunto. Um estava meio perdido na vida, outro nem sabia a que veio. Talvez não
servissem para serem protagonistas, a não ser que fossem de filme mudo para
cegos. Antes daquilo, quais nomes poderiam ter? As possibilidades, como
qualquer uma do passado em que ainda não se conheciam por voz, eram melhores,
até mesmo mais duradouras.
Ir embora foi tão
fácil: os pés se aceleraram, cada um para o seu rumo com uma vontade de
voltarem a serem aquilo de antes. Uma vontade tanta, tamanha, meio estranha. A
despedida quase não quis sair em som, porque estavam habituados e confortáveis
no adeus tímido e emudecido. Ainda mais, sobre as calçadas e ruas, em seus
lugares distanciados, estranharam o fato de não olharem para mais ninguém com
aquele olhar que tinham um sobre outro: o incomum encarando o diferente. Era só
deles, e perderam. Mas que crime, mas que pecado, mas que troço ruim. Já se
conheciam, não havia volta. Ele já era Pedro, ele já era Márcio, os nomes nem
combinavam em ordem ou fora dela, nem se encaixavam, mas que horror.
Do dia seguinte em
diante, nenhum deles pegou o ônibus de sempre, nenhum deles se viu outra vez.
Não sabiam se esperavam pelo passar do tempo e o provável esquecimento, para
que em algum dia, meio sem querer e casualmente, pudessem ter o prazer de se
encontrarem como desconhecidos mais uma vez, ou se apenas corriam para longe
dos acasos para ignorarem suas culpas de terem acabado com algo tão
silenciosamente bom. Fingiram, depois do fim das farsas, que nada aconteceu
naquele dia, naquele veículo, naquele banco, no dia em que o motorista assumiu
o volante e deixou dois passageiros desviarem seus trajetos.
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