dezembro 14, 2015

Ao Bukowski

     Você aposta em cavalos, Bukowski, eu só sei apostar no amor. Sei que também já apostou nessa coisa que é tudo aquilo que dissemos que não era, porque reconheço seu sentimentalismo de longe, nas entrelinhas mais discretas. A diferença entre você e eu, é que você sabe fingir bem que não sente nada por ninguém, só sente muito pela própria vida, como se um suicídio fosse um favor que você não vai cumprir tão facilmente. Eu não sei fingir nada e me deixo exposta em um sol de meio-dia lembrando das coisas suas que já li. Eu te vejo com suas incontáveis mulheres, adorando todas elas com seus defeitos mais gritantes - porque você gosta dos erros, das falhas -, e de minha mulher eu só chamo a cerveja, o único cão dos diabos que me dá bons efeitos. Essa cerveja aí é tudo o que você quer pra agora? Não vai pedir um vinho ou um uísque? Eu pergunto isso porque, na verdade, gostaria de estar perguntando o que te abala e te faz chorar deitado em posição fetal no meio de uma crise, mas soaria um porre. Perguntaria isso apenas porque estou aqui comparando sentimentos nossos, procurando qualquer deslize que sai de uma palavra sua e corre até uma minha para que possamos nos parecer em algo, porque meu desespero grita. Meu desespero de entender como é ser um escritor como você e para entender como é ter mais de cinquenta anos e não morrer de decepção com a própria escrita - porque acreditar que ela é boa é difícil demais. Eu me pergunto, e queria ter uma coragem tamanha de perguntar pra você, admitindo até que não reconheço em mim forças para isso, como os grandes títulos geniais aconteceram. Francamente,"Essa loucura roubada que não desejo a ninguém a não ser a mim mesmo amém", como isso aconteceu? Como os pedaços de um caderno manchado de vinho surgiram? Como você colocou todas aquelas salas de estar que sempre davam em cozinhas com bebidas no Hollywood? Como uma crise existencial vai de um pássaro azul a uma reflexão sobre merda? Eu não saberia percorrer tanto caminho dentro de uma literatura assim nem se escrevesse em todo muro que eu encontrasse daqui pra frente. Eu não saberia enganar tanta gente do século XXI com frases pseudo-otimistas, soando com uma pessoa que até faz auto-ajuda, para em uma leitura mais aprofundada revelar que as lamentações de um velho safado nunca fizeram sorrir, a não ser através daquela risada ácida sobre as piores desgraças da vida.
    Nós podemos conversar sobre as mulheres e suas formas, e seus corpos, e seus cheiros, e seus jeitos. Nós podemos conversar sobre as bebidas e seus gostos, e seus efeitos, e suas ressacas. Mas a escrita sempre vai ser pertinente quando se trata de você. Seu silêncio eterno vai dizer "Don't try" e eu só queria saber como é não tentar em uma coisa tão imprevisível, como é não ir em frente até quando não se sabe se pode sair um texto muito bom ou muito ruim. Que porra você faz na frente da máquina de escrever? Vira garrafas e escreve tudo o que quer? Fica encarando aquelas letras, aquele papel, aquela ideia dentro da mente? Eu não sei como, de todos os resultados possíveis, você conseguiu os melhores, sendo apenas um fodido na vida. Digo, você não escreveu sobre dragões e deuses mitológicos, tampouco sobre fantasmas que não fossem a própria consciência e a própria razão. Você foi o melhor fodido nessa vida toda, certo?
    Sei que não ficará por aqui sanando dúvidas, então, antes que se levante para ir embora e eu precise começar uma briga com alguém do bar para te fazer ficar mais um pouco, eu só vou dizer uma coisa qualquer sobre inspiração. Sobre o quanto as duas primeiras páginas de Pulp, primeiro livro seu que li, mudaram toda a minha visão sobre tudo. É irônico como logo o seu último livro foi o meu primeiro - e a essa altura já não sei mais em que época planejo essa conversa toda -, e é um tanto engraçado como desde então eu nunca mais quis seguir padrão nenhum de escrita. E é curioso como uma garota de 15 anos lia Charles Bukowski escondida enquanto matava aula na escola e, sabendo pouco sobre a dor e lendo muito de um rabugento, quis fazer algo parecido na vida. Anos mais tarde, Buk, eu descobri o quanto o álcool salva a escrita, na hora ou depois, no porre ou na ressaca, na tontura ou na ânsia, no fogo ou no banho gelado. Salva sempre. E a escrita salva a vida, isso eu leio em cada linha sua. Nosso brinde pode ser contínuo: um copo de cerveja gelada virado de uma vez em todas as vezes que bebermos e pensarmos em algo para escrever.
Flavia Andrade

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